Breve Miragem de Sol Crítica Cinematográfica
- Vinicius Monteiro
- 3 de mar.
- 4 min de leitura

★★★☆☆
Vivendo à própria sorte e recentemente divorciado, Paulo começa a trabalhar como taxista durante a noite, no Rio de Janeiro. Lutando para conseguir dinheiro suficiente para pagar a pensão do filho de 10 anos, Paulo trabalha exaustivamente, nessa jornada noturna, sempre encontra novos rostos que o ajudam a enfrentar a solidão. Entre essas pessoas, está Karina, uma enfermeira que traz a paz e o amor de volta para sua vida.
Ao mergulhar na atmosfera de 'Breve Miragem de Sol', uma sensação de melancolia permissiva se apodera do espectador. Eryk Rocha, em colaboração com Fabio Andrade e Julia Ariani, teceu um roteiro de simplicidade aparente, uma narrativa hermética que, à primeira vista, se apresenta como um microcosmo isolado. No entanto, a complexidade da trama se revela ao contemplarmos o contexto que aprisiona o protagonista: um labirinto de desemprego, ausência de perspectivas, uma economia em declínio e a cruel disparidade entre as classes sociais. É nesse cenário que a melancolia se torna não apenas compreensível, mas quase inevitável, uma sombra que paira sobre a existência do personagem e que, por extensão, ecoa na alma do público.
A lente da câmera, posicionada no interior do táxi, desvenda gradualmente a figura do motorista, tecendo um retrato íntimo de sua existência. A câmera percorre o habitáculo do veículo com movimentos fluidos, ora detendo-se no banco traseiro, ora revelando o banco dianteiro através de closes e planos conjuntos. Mesmo quando a ação se desenrola no exterior, o ponto de vista permanece inabalável, fixo no interior do carro, isolando-o do mundo exterior.
A construção do personagem Paulo, interpretado por Fabrício Boliveira, emerge de uma teia intrincada de interações com os passageiros, revelando-se com uma delicadeza e precisão notáveis. Sua figura, imersa em uma solidão palpável, manifesta-se através de uma economia de palavras e uma contenção emocional que beira o estoicismo. A atuação de Boliveira, marcada por um minimalismo expressivo, traduz a dor do protagonista em nuances sutis de gestos e olhares.
Paulo, um marginal de si mesmo, trava uma batalha interna para libertar-se das próprias amarras, um reflexo das lutas enfrentadas por muitos brasileiros. A narrativa cinematográfica opta por uma imersão profunda na perspectiva do personagem, relegando o mundo exterior a um plano de fundo caótico, onde ruídos e imagens se fundem em um borrão indistinto. Essa escolha estética intensifica a sensação de isolamento e a claustrofobia emocional que definem a jornada de Paulo.
A lente da câmera fixa-se no semblante taciturno e exausto de Paulo, numa busca que transcende o visível, como se almejasse penetrar na complexidade da mente daquele homem, desvendando os segredos que ele próprio oculta. O espectador, por sua vez, sente-se aprisionado, partilhando da mesma sensação de confinamento que o protagonista vivencia. Se o close-up, em sua essência, exalta a expressividade dos atores, neste contexto específico, ele se transforma em um instrumento capaz de capturar as nuances mais sutis da atuação de Boliveira, a quem, ironicamente, parece ser solicitado que execute o mínimo possível, revelando a maestria do ator em transmitir emoções profundas através de gestos quase imperceptíveis.
Eryk Rocha tece uma narrativa visual perspicaz, utilizando a figura de Paulo, o taxista, como guia para desvendar as camadas multifacetadas do Rio de Janeiro. A câmera, em planos laterais que mimetizam o olhar do condutor, desvia-se dos cartões postais e mergulha nas áreas periféricas, onde a ausência de políticas públicas se manifesta em paisagens de marginalização e na dura realidade de pessoas que encontram nas ruas o seu lar.
A imersão nesse universo é intensificada pela trilha sonora, que entrelaça notícias de rádio e mensagens de outros taxistas, construindo um mosaico de informações sobre a cidade e seus habitantes. Nesse espaço, a relação entre o protagonista e o Rio de Janeiro se revela em uma simbiose complexa, onde o asfalto se torna palco para a vida e suas adversidades.
'Breve Miragem de Sol' se desdobra como uma tapeçaria cinematográfica de ritmo contemplativo, tecida com fios de reflexão e introspecção. A narrativa, desprovida de diálogos prolixos, convida o espectador a imergir no fluxo silencioso do tempo, observando o mundo através da perspectiva do protagonista, um motorista cuja jornada se torna um espelho da própria existência.
A cadência pausada do filme, embora possa parecer um desafio para alguns, revela-se uma escolha estética deliberada, um convite à meditação e à observação atenta. A ausência de uma dinâmica frenética permite que os detalhes sutis da vida se manifestem em sua plenitude, convidando o espectador a contemplar a beleza e a melancolia do cotidiano.
Embora a narrativa pudesse ter se beneficiado de um ritmo mais ágil, é inegável que a escolha de Eryk Rocha em evitar exposições didáticas e em priorizar a experiência sensorial confere à obra uma aura de autenticidade e profundidade. A contemplação do tempo, em sua forma mais pura, torna-se o fio condutor de uma experiência cinematográfica que transcende a mera sucessão de eventos, convidando o espectador a uma jornada interior.
A experiência de assistir a 'Breve Miragem de Sol' revela-se profundamente distinta conforme a plataforma de exibição. No ambiente tradicional da sala de cinema, onde a imersão é praticamente inescapável, o público, após adquirir seus ingressos, permanece cativo diante da tela, testemunhando o desenrolar da narrativa até os créditos finais. Contudo, no vasto e multifacetado universo do streaming, como o Globoplay, a dinâmica se altera drasticamente. A facilidade de acesso a um catálogo extenso e a liberdade de escolha permitem que muitos espectadores, diante da densidade da obra, optem por abandonar a jornada cinematográfica, buscando alternativas mais leves e imediatas.
Ao longo de uma hora e meia, somos convidados a mergulhar nos recônditos da alma de um protagonista, cuja existência fictícia paradoxalmente espelha a realidade de muitos. 'Breve Miragem de Sol' pinta um retrato visceral de um brasileiro dilacerado, um indivíduo que personifica as angústias e desesperanças de uma sociedade em frangalhos. A narrativa transcende a mera ficção, transformando-se em um espelho que reflete as mazelas e os desafios enfrentados por um país inteiro.
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