Tintim na América Resenha
- Vinicius Monteiro
- há 7 dias
- 4 min de leitura
★★★☆☆
Em Tintim na América, os Estados Unidos estão dominados pelo banditismo. As quadrilhas agem como se fossem empresas, com o racionalismo e a eficiência do capitalismo americano. Convocado para acabar com isso, Tintim desembarca em Chicago com seu fiel companheiro Milu. Mal chegam, eles são seqüestrados pelos homens de Al Capone. Será apenas o primeiro de uma série de atentados de que vão escapar, graças à coragem, astúcia e uma formidável dose de sorte. A perseguição aos gângsteres levará Tintim e Milu a empreender um périplo pelo país. Do Velho Oeste, onde se vêem às voltas com os índios pés-pretos, voltam por fim a Chicago, não sem antes atravessar o deserto a pé. Mas conseguirá Tintim mandar para trás das grades esses ousados criminosos e suas quadrilhas?
Após a polêmica de "Tintim no Congo", Hergé deu início a um projeto que prenunciava a genialidade de suas obras futuras. Em sua terceira criação, o autor, ainda que permeado por elementos sociais questionáveis de sua época, introduziu reflexões instigantes sobre a submissão dos povos indígenas pelos colonizadores europeus. Essa abordagem, embora reflexo do contexto histórico, adquire nuances críticas e permite uma leitura multifacetada, transcendendo a mera representação da realidade. Além disso, Hergé apresentou uma visão peculiar do crime organizado em Chicago, em plena Lei Seca e sob o impacto da crise de 1929, explorando a intrincada teia de poder e corrupção que assolava a cidade.
A fusão do Velho Oeste americano com os Estados Unidos da Era Industrial é magistralmente orquestrada pelo autor, desdobrando-se em uma sequência de quadros com elipses temporais de notável beleza. Essa narrativa visual não apenas captura a rápida transformação da paisagem geográfica após a descoberta do poço de petróleo por Tintim, mas também ilumina a metamorfose dos valores sociais e o desprezo com que os americanos tratavam os nativos, aqui representados pelos Peles-Vermelhas. Os bandidos, por sua vez, são retratados com uma atenção especial, revelando-se como elementos intrínsecos ao funcionamento burocrático, econômico e até institucional do Estado.
Uma evolução notável em relação ao álbum anterior reside na coesão narrativa, onde a trama, apesar de se ramificar em múltiplos fios, converge de forma engenhosa para um ponto central, revelando o verdadeiro objetivo do jovem repórter. A conclusão da história se distancia do endeusamento de Tintim, observado no Congo, optando por homenagear um cidadão de feitos extraordinários. Embora a mudança de cenário propicie essa abordagem distinta, é crucial reconhecer que as tribos americanas, com suas complexas hierarquias sociais e códigos de honra, também renderam tributos a Tintim e Milu durante sua jornada.
A representação dos povos indígenas em narrativas frequentemente se manifesta através de uma lente infantilizada, especialmente quando o tema religioso é abordado. Nesse contexto, os princípios sociais indígenas, intrinsecamente ligados a divindades e símbolos como a machadinha de guerra, são frequentemente desvalorizados pela figura do personagem branco, que demonstra um certo desdém em relação aos costumes nativos.
A obra de Hergé, em particular, parece corroborar essa visão, ao apresentar "Deus" como a entidade que atende aos pedidos de Tintim em momentos de extrema dificuldade, como o "milagre" ocorrido na linha férrea. Essa construção narrativa reforça a ideia de que a espiritualidade indígena é inferior ou menos eficaz em comparação com a crença do personagem branco, perpetuando estereótipos e preconceitos.
Apesar de apresentar um roteiro com elementos previsíveis e uma estrutura narrativa que, em certos momentos, recai na repetição de sequências de ação, "Tintim na América" se destaca como um álbum notável dentro da série. A aventura, em sua maior parte, se desenrola de forma fluida e envolvente, impulsionada por um ritmo ágil que evita rupturas na progressão da história. A introdução de figuras como bandidos, prisões e fugas, longe de serem meros artifícios, contribui para a dinâmica da narrativa e para a construção da persona de Tintim como um jovem intrépido e cidadão exemplar.
Um aspecto digno de nota é a habilidade do autor em evitar a transformação do protagonista em um estereótipo de super-herói invulnerável, que escapa de situações de risco de forma miraculosa. Embora alguns momentos possam gerar essa impressão, o autor mantém a coerência da narrativa, preservando a verossimilhança da história como um todo. Em suma, apesar de alguns tropeços pontuais, o resultado final da obra é inegavelmente positivo, consolidando "Tintim na América" como um capítulo memorável nas aventuras do jovem repórter.
Com uma narrativa cativante e bem entrelaçada com suas tramas paralelas, Hergé presenteia com "Tintim na América", uma boa aventura. A obra se revela como uma crítica mordaz e bem-humorada ao submundo do crime organizado nos Estados Unidos, expondo a ineficácia de certas instâncias policiais e o choque entre valores tradicionais e modernos, que culmina em situações hilárias, como a da senhora que, movida por compaixão, aciona a alavanca do trem para salvar um cervo, ignorando o jovem amarrado aos trilhos. "Tintim na América" é a primeira obra de Hergé que me cativou, mas ainda sim, achando a obra de Hergé mediana.
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